O caso analisado envolve um homem que passou as mãos na genitália de uma mulher enquanto ela dormia. Inicialmente, o Tribunal de Justiça de São Paulo desclassificou a conduta de estupro de vulnerável para importunação sexual, considerando que a vítima estava acordando e poderia ter sua percepção alterada. Entretanto, o Ministério Público recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, questionando se a conduta deveria ser mantida como estupro de vulnerável, considerando que a vítima se encontrava em estado de sono no momento da ação.
O raciocínio jurídico da decisão
Qual foi a principal controvérsia jurídica apresentada no caso?
A controvérsia central residia na classificação legal da conduta praticada pelo acusado. O Tribunal de Justiça de São Paulo havia desclassificado o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal) para importunação sexual (artigo 215-A do Código Penal). Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça precisou determinar se um ato libidinoso praticado contra pessoa em estado de sono caracteriza estupro de vulnerável ou pode ser reduzido a importunação sexual.
Além disso, a defesa alegava que houve revaloração indevida de provas, contrariando a Súmula nº 7 do STJ, e que ocorreu supressão de instância por não reabertura da instrução probatória. Simultaneamente, questionava-se a relevância da palavra da vítima em crimes contra a dignidade sexual.
Como o STJ definiu o conceito de ato libidinoso no contexto do estupro de vulnerável?
O tribunal estabeleceu que o conceito de ato libidinoso é amplo e abrange diversas condutas além da conjunção carnal. Primeiramente, conforme o entendimento consolidado do STJ, os atos libidinosos incluem “toques, contatos voluptuosos, beijos lascivos, contemplação lasciva, dentre outros”. Entretanto, o legislador não estabeleceu um rol taxativo ou exemplificativo sobre quais atos seriam considerados libidinosos.
Devido a essa amplitude conceitual, a Lei nº 12.015/2009 consolidou no delito de estupro tanto a prática de conjunção carnal quanto qualquer outro ato libidinoso. Finalmente, o tribunal enfatizou que basta a presença do dolo específico de satisfazer à lascívia para configurar o crime, independentemente da ligeireza ou superficialidade da conduta.
Qual o fundamento legal para caracterizar o estado de sono como vulnerabilidade?
O artigo 217-A, § 1º, do Código Penal estabelece que configura estupro de vulnerável a prática de atos libidinosos com pessoa que “não pode oferecer resistência”. O STJ interpretou que o estado de sono enquadra-se perfeitamente nessa hipótese legal. Primeiramente, a pessoa dormindo encontra-se em situação de vulnerabilidade temporária que prejudica sua capacidade natural de resistência.
Ademais, o tribunal destacou que existe presunção absoluta de violência quando a vítima não pode oferecer resistência por qualquer causa. Portanto, o estado de sono constitui elemento especializante do crime de estupro de vulnerável, não permitindo desclassificação para importunação sexual. Finalmente, essa interpretação visa proteger pessoas em situação de vulnerabilidade temporal, como o sono.
Como o princípio da especialidade resolve o conflito entre estupro de vulnerável e importunação sexual?
O Superior Tribunal de Justiça aplicou o princípio da especialidade para resolver o aparente conflito normativo entre os artigos 217-A e 215-A do Código Penal. O artigo 217-A possui elemento especializante específico – “menor de 14 anos” ou “pessoa que não pode oferecer resistência” – que torna a norma mais específica. Consequentemente, quando presente qualquer dessas circunstâncias, aplica-se o estupro de vulnerável.
Simultaneamente, o próprio artigo 215-A do Código Penal contém cláusula de subsidiariedade expressa, estabelecendo que a importunação sexual só se aplica “se o ato não constitui crime mais grave”. Portanto, havendo tipificação como estupro de vulnerável, automaticamente exclui-se a possibilidade de aplicação do crime subsidiário de importunação sexual.
Qual a importância da palavra da vítima em crimes contra a dignidade sexual?
O tribunal reafirmou jurisprudência consolidada sobre a especial relevância da palavra da vítima em crimes contra a dignidade sexual. Primeiramente, esses crimes caracterizam-se por serem praticados “na clandestinidade, sem a presença de qualquer testemunha”, conforme destacado na decisão. Devido a isso, a palavra da vítima assume papel probatório fundamental para demonstração da materialidade e autoria delitiva.
Entretanto, o STJ estabelece que essa relevância especial exige que o depoimento da vítima seja “coerente e em harmonia com outros elementos de convicção existentes nos autos”. Além disso, a jurisprudência reconhece que a materialidade do estupro de vulnerável não necessita de vestígios materiais, pois muitos atos libidinosos não deixam evidências físicas. Finalmente, outros meios de prova podem atestar a materialidade e autoria, mesmo sem exame pericial conclusivo.
Como o STJ abordou a alegação de revaloração indevida de provas?
O tribunal esclareceu que a revaloração da prova é admitida em recurso especial quando não demanda reexame do material cognitivo. Primeiramente, diferencia-se a revaloração do reexame fático: enquanto o reexame está vedado pela Súmula nº 7 do STJ, a revaloração jurídica dos fatos já estabelecidos é permitida. No caso concreto, restou incontroverso que o acusado passou a mão na genitália da vítima enquanto ela dormia.
Consequentemente, a questão não envolvia rediscussão dos fatos apurados, mas sim sua correta qualificação jurídica. Portanto, o Superior Tribunal de Justiça poderia analisar se a conduta comprovada configurava estupro de vulnerável ou importunação sexual, sem incorrer em reexame probatório vedado. Finalmente, a moldura fática estabelecida pelas instâncias ordinárias permitia a aplicação direta da lei ao caso concreto.
Conclusão
“A prática de ato libidinoso com pessoa em estado de sono configura estupro de vulnerável, não sendo possível a desclassificação para importunação sexual. A palavra da vítima tem especial relevância em crimes contra a dignidade sexual, mesmo na ausência de vestígios materiais.”
(STJ. Quinta Turma. AgRg no REsp 2.208.531. Min. Joel Ilan Paciornik. julgado em 12/08/2025) [inf. 859]